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quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

O Deus com Chifres - Caverne des Trois Frères



A representação mais antiga que se conhece de uma divindade encontra-se na Caverne des Trois Frères, em Ariège e data do final do período paleolítico (Idade da Pedra Lascada - 1 milhão de anos atrás até 10 000 a.C)

A figura é de um homem vestido com a pele de um cervo ou veado, usando na cabeça chifres desse animal. A pele cobre todo o corpo do homem; as mãos e os pés foram desenhados como se estivessem sendo vistos por um material transparente, fornecendo assim ao espectador a informação de que a figura é um ser humano disfarçado. O rosto tem barba, mas há uma certa dúvida sobre a intenção do autor: se ele queria representar um homem-animal com máscara ou com o rosto descoberto.

O homem com chifres foi desenhado na parte superior da caverna; abaixo dele e à sua volta há representações de animais pintados de maneira magistral, característica do artista do paleolítico. Levando em conta a posição relativa das figuras, o homem ocupa uma posição dominante e está no ato de realizar uma cerimônia na qual os animais tomam parte. Embora a pintura dos animais esteja localizada onde pode ser facilmente vista por um observador, o homem com chifres só pode ser visto da parte da caverna onde o acesso é mais difícil. Esse fato sugere que um alto grau de divindade era atribuído a essa representação.

De acordo com antropóloga Margaret Murray, seu significado só pode ser compreendido pela analogia, mas os elementos são suficientes para que possamos ter quase certeza de que o homem representa o deus encarnado, prestes a realizar uma dança sagrada.

Diz Gerald Gardner em The Meaning of Withcraft: “Ele é o antigo deus fálico da fertilidade que veio dos primórdios do mundo.”

O Homo sapiens sapiens já vivia há cerca de 40 000 anos, e é o responsável por essas representações, assim como pelas pinturas nas paredes de outras cavernas como a de Lascaux, na França e de Altamira, na Espanha.

Nesse período a temperatura na Europa caia rapidamente e grandes lençóis de gelo ocupavam a Terra. A glaciação matou a vida vegetal e a sobrevivência dos clãs dependia da caça. As pinturas representavam o espírito dos animais que nossos ancestrais desejavam caçar e foram a primeira forma de magia simpática reconhecida pelos historiadores.

O homem de Ariège é provavelmente a representação do espírito das manadas, o deus encarnado, guardador de rebanhos.

No início de neolítico, os grandes lençóis de gelo retrocederam, e as sociedades nômades de caça deram lugar às sociedades sedentárias. Quando os humanos caçadores-coletores que habitavam as florestas começaram a desenvolver essas sociedades agrícolas, trouxeram consigo as antigas deidades do mundo selvagem. O deus de cornos de gamo da floresta foi transformado um deus com cornos de bode dos pastos, provavelmente pela necessidade de se domesticarem animais numa sociedade agrícola. E, nessa sociedade o deus da floresta tornou-se também o deus das colheitas.

O foco do antigo culto, no entanto, não era centrado numa forma masculina, mas numa forma feminina. Os primeiros ancestrais da expressão do paganismo, chamada hoje de Antiga Fé, cultuavam uma Deusa Mãe que refletia a misteriosa natureza das mulheres, a qual lhes consentia sangrar por dias sem enfraquecer e gerar outra vida humana. E, se a vida provinha da mulher que ‘engravidava dos deuses deitada ao luar’, toda a criação provinha de uma divindade feminina.

Foi apenas na Idade do Bronze que o homem descobriu fazer a relação entre o ato sexual e a fecundação.

Imagens neolíticas de figuras femininas poderosas foram encontradas em dezenas de lugares espalhados pelo planeta, como a Deusa de Willendorf, a do Rio Nilo e a impressionante estatueta de uma mulher dando á luz sentada num trono e cercada por animais, de Çatal Hüyük na Turquia, datada de 5750 a.C

A RELIGIÃO

Para os pagãos, os Deuses são a própria natureza e, por isso, a preservação dela é a essência da Religião da Deusa. O princípio da imanência está em tudo. Ela é onipresente da vida e em cada ser humano. A Antiga Fé não vê a divindade como algo á parte da natureza. Ela é o mundo, a terra, e todas as coisas que existem. Rios, mares, árvores, pedras são a própria divindade manifesta.

O paganismo como religião começou a tomar forma no período mesolítico e se estabeleceu definitivamente entre os povos do neolítico, cuja cultura e sobrevivência estavam diretamente ligadas á terra. Desenvolveram rituais sazonais de adoração á natureza observando a própria natureza e a trajetória do sol ao longo do ano. Tais ritos acompanhavam o ciclo das estações, a semeadura, crescimento e colheita das lavouras e fertilidade os animais.

Embora fosse a Deusa foco dos cultos, era em torno da figura do deus que girava a Roda do Ano. Nos ritos, bem como na religião como um todo, o deus personifica o Sol e sua passagem pelo céu. A Deusa personifica a lua e seus ciclos, bem como toda a natureza vegetal. Ela é a mãe, ele o filho/amante; ela a semeadora, ele a semente. Ele é a caça e também o caçador. Ela dá a vida e chama para a morte.

A Roda do Ano, composta por oito rituais, é um síntese de séculos de história, desde os ritos de caça e de culto aos mortos do paleolítico, aos ritos apropriados a fertilidade da terra e dos rebanhos do neolítico. São eles:

YULE, o solstício de inverno. A Festa de Renascimento do Sol celebra o nascimento do Deus Sol após a noite mais longa do ano. Ele passa a governar a parte escura do ano.

IMBOLC, o 1º. Festival do Sol. Os campos são purificados e preparados para a semeadura, enquanto se celebra o crescimento da Criança Divina nascida no Yule.

EOSTRE, o equinócio de primavera, tempo da semente brotando na terra. O dia e a noite são iguais e a Criança Divina vai se tornado o jovem caçador.

BELTAINE, o Festival da Fertilidade celebra a força vital da natureza e se acendem os fogos que vão iluminar o caminho do verão. O Deus jovem e a Deusa se unem.

LITHA, o solstício de verão é a época do grão amadurecido. É no ápice que inicia a decadência. A Deusa passa a governar a parte clara, o Deus torna-se adulto.

LAMMAS, o primeiro festival da colheita, comemora a união fértil dos deuses em Beltaine. O Deus adulto de Litha incia seu processo de amadurecimento.

MABON, o equinócio de outono, celebra segundo festival da colheita. Os frutos da terra são todos colhidos e o Deus começa a envelhecer.

SAMHAIN, o Festival dos Mortos, marca a volta da estação fria e a morte do Deus, que renascerá em Yule. Acontece em 31 de outubro, dia do Ano Novo Celta.

A estrutura religiosa de vários povos da antigüidade foi unificada em uma única religião pelos druidas, sacerdotes celtas. Em The Mysteries of Britain, Lewis Spence afirma que os ensinamentos druídicos surgiram de uma combinação da cultura mediterrânea neolítica com as crenças nativas da antiga Bretanha. O Culto aos Mortos, comum ás crenças da Europa Setentrional, teriam sido trazidos por viajantes mediterrâneos, os homens de Long Barrow, ao litoral britânico por volta de 2000 a.C.

Entre 600 e 500 a.C os celtas invadiram a Europa e se deparam com os cultos.

Com o início da Idade do Ferro, as ilhas britânicas ficaram isoladas e dessa forma as crenças celtas transformaram os ensinamentos importados numa religião única.

Quando uma Roma cristianizada invadiu a Europa no sec. VII d.C, iniciou-se a conversão dos povos pagãos a nova religião do Cristo.

Cinco séculos mais tarde, aqueles que não aderiram á nova religião passaram a sofrer a perseguição da igreja. Mas foi no ano de 1484 que essa perseguição tornou-se oficial, com a assinatura da Bula de Inocêncio VIII, dando aos inquisidores Heinrich Krames e James Sprenger poderes de vida e morte sobre os pagãos seguidores da Antiga Fé.

Durante 4 séculos, milhares de pessoas foram torturadas e mortas sob o pretexto de servirem ao demônio, genocídio perpetrado na época em que se formavam as nações modernas.

A Santa Inquisição transformou o Deus de Chifres no demônio católico e o Sagrado Feminino em feiticeiras malignas queimadas em fogueiras.

A Antiga Fé teria sido completamente varrida da história, não fossem os poucos que conseguiram escapar do braço secular da igreja e levado os ensinamentos antigos para as sombras da História.

O paganismo desses povos foi resgatado nos sec XIX e XX por antropólogos como Margaret Alice Murray, Gerald Gardner e Charles Godfrey Leland que escreveu, em 1899, Aradia Golpel of Witches.

Os neo-pagãos chamam de WICCA a Antiga Fé. Mas, mesmo estabelecida como religião, a WICCA tateia no escuro a procura de suas raízes. Afinal, a pré-história nos deixou apenas resquícios de suas civilização e a História, como sempre, é escrita pelos vencedores.

Bibliografia:

Barrionuevo, Mara – A Deusa, Jornal O Exotérico, 2001

----------------------- Wicca, Jornal O Exotérico, 2002

----------------------- O Deus das Bruxas, Jornal O Exotérico, 2003

Gardner, Gerald – Bruxaria Hoje, Madras Editora, 2003

Grimassi, Raven – Os Mistérios Wiccanos, Ed. Gaya, 1997

Heinrich Krames e James Sprenger – Malleus Maleficarum, 1484 (Ed. Brasileira Rosa dos Tempos, 1991)

Murray, Margaret – The Witch-Cult in Western Europe, Oxford University Press, 1921

----------------------- O Deus das Feiticeiras, Oxford University Press, sem data

Prieto, Claudiney – Wicca A Religião da Deusa, Ed. Gaya, 2000

Santos, Maria Januária V. - História Antiga e & Medieval. Ed. África, 1992

Starhawk – A dança Cósmica das Feiticeiras, Ed. Record, 1979

Seguindo os rastros de Fernando Pessoa, na voz de Álvaro Campos, ao sugerir que a obra de seu mestre Caeiro é a reconstrução do paganismo, vejamos em primeiro lugar o

sugestivo título, escolhido certamente não ao acaso.

Quem é O GUARDADOR DE REBANHOS?

O título remete diretamente à pintura mítica do homem cercado de animais na Caverne des Trois Frères, em Ariège. O Guardador de Rebanhos de Caeiro é o antigo deus da fertilidade que veio dos primórdios do mundo, o Senhor da Caça e dos caçadores, o espírito que guardava as manadas e inspirava nossos ancestrais do paleolítico a pinturas como a encontrada em Ariège e Lascaux, na França, e em Altamira, na Espanha.

As primeiras linhas do poema Eu Nunca Guardei Rebanhos remete não apenas à figura do Senhor das Manadas, mas ainda as andanças do Deus pagão pela Roda do Ano, a roda cíclica das estações que descreve o nascimento, vida, morte e renascimento do Deus.

Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações

Na Roda do Ano, é na época do Samhain que acontece a morte do Deus. Dizem as lendas, poeticamente, que ‘a Criança Divina volta ao útero da Mãe, a própria Natureza’

Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.

Novamente nessas linhas Caeiro faz referência ao ciclo das estações. O pôr do sol, o esfriamento das planícies são alusões á chegada no inverno, chamado pelos pagãos de ‘a parte escura do ano’.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.

Depois de percorrer o ciclo completo das estações vem o descanso, o sossego no útero da mãe. É natural e justa pois o ciclo das estações está completo e o Deus foi semente que cresceu e planta colhida, volta a ser semente para renascer no próximo ciclo da Roda.

Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso

Caeiro fala aqui mais uma vez do Deus das manadas. Os pagão do paleolítico não apartavam o deus dos animais que o rodeavam. Ele era o próprio espírito da manada e, portanto, parte dela.

E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),

Novamente o pôr do sol, a ‘a nuvem passa a mão por cima da luz’, a alusão à proximidade do inverno, a parte escura do ano. Á luz da Roda das Estações é justamente na proximidade do inverno que o Deus se torna velho. E corre um silêncio (da morte?) pela erva fora.

Por isso Caeiro ‘sente um cajado nas mãos’. O cajado do pastor ou do deus-homem envergado pelo tempo que usa o cajado como apoio e aguarda a estação da morte?

Aqui também Caeiro olha para o rebanho e vê suas idéias, assim como o Deus está fora do rebanho e ao mesmo tempo faz parte dele.

É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.

(...)
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias,
Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho,

Qualquer cousa natural, por exemplo a árvore antiga. Aqui Caeiro torna-se parte da Natureza, como a árvore. Mas vale lembrar que em muitas das religiões pagãs, a árvore tem um papel central: Yggdrasil era a Árvore do Mundo dos mitos nórdicos e é pela Árvore do Mundo que xamãs ‘sobem e descem’ em suas viagens visionárias.

Muitos dos deuses pagãos eram associados às árvores, como na lenda de Átis, o deus Pinheiro. Entre os celtas o carvalho era a árvore sagrada, do qual provinha o visco. Além do carvalho, os celtas possuíam um alfabeto arbóreo chamado Beth Luis Nion.

Em algumas das tradições neo-pagãs, a parte clara (primavera e verão) e parte escura (outono e inverno) da Roda do Ano são representadas pelo embate entre o jovem Deus Carvalho e o velho Deus Azevinho.

Não seriam ainda as crianças, que se sentam á sua sombra cansadas de brincar, os próprios seguidores da Fé, exaustos após longas horas de danças rituais?

(...)
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural —
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.

* Esse texto é uma análise do poema O GUARDADOR DE REBANHOS (Livro homônimo), escrito por Fernando Pessoa na voz de um de seus heterônimos, Alberto Caeiro, no qual outro de seus heterônimos, Álvaro Campos afirma, no prefácio, ser essa obra o próprio paganismo.

Trabalho para a disciplina de Literaturas da Língua Portuguesa, curso de Licenciatura em Letras, USP/2010.

* Interpretação da obra: Mara Barrionuevo

* imagens da web

** Antiga Fé, poesia e literatura: tudo é cultura!

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Inquisição - Insanidade Religiosa ou Política?



No dia 9 de dezembro de 1484 o Bispo Inocêncio VIII assinou na Basílica de São Pedro, em Roma, o documento conhecido como “ A Bula de Inocêncio VIII”, no qual outorgava aos Professores de Teologia da Ordem Dominicana Heinrich Kramer e James Sprenger o poder amplo e irrestrito de, como Inquisidores recorrerem ao “ braço secular da Igreja”, ou seja, aprisionar e punir quaisquer pessoas sem qualquer impedimento e de todas as formas possíveis que fossem suspeitas de bruxaria, tendo assim se “desagarrado da Fé Católica, entregando-se a demônios”, de acordo com as palavras do próprio Bispo.
Nesse mesmo ano de 1484, Kramer e Sprenger escreveram o Malleus Maleficarum, o manual oficial da Inquisição para a caça as bruxas, que levou à tortura e à morte mais de 100 mil mulheres. O período em que ocorreu a Inquisição, conhecido como Era das Fogueiras, vai do final do século XIV até meados do século XVIII.
Mas, como e porque acontece a Santa Inquisição ?
Até meados do século IV, a religião pagã dominava a Europa. Os nobres e camponeses adoravam a uma Deusa Mãe e seu filho Divino. A mulher era considerada um ser sagrado por sua função reprodutora e as sociedades que se dedicavam a coleta, pesca e a caça à pequenos animais podiam ser consideradas matricentrais.
Quando os recursos vegetais e pequenos animais vão se esgotando, inicia a caça sistemática a grandes animais, e junto com ela, a supremacia masculina. No decorrer dos séculos acontece a transição das culturas e, enquanto se escrevia o Gênesis no Oriente Médio, as grandes culturas patriarcais vão se sucedendo e a Deusa Mãe vai perdendo seu poder. No século IV, início da Idade Média, o Cristianismo torna-se a religião oficial dos romanos e até o século X vai se sedimentando entre os clãs e tribos bárbaros.
A chegada da nova religião não altera significativamente os hábitos religiosos dos camponeses, que vêem na Virgem Maria a Grande Mãe e no Menino Jesus a Criança Divina, ou seja, outra visão de suas próprias crenças.
Mas o patriarcado e a nova religião tornaram confusos os papeis da mulher na sociedade. Contudo, ela continua a ocupar lugar de destaque na sociedade porque os homens se ausentavam e morriam em função das constantes guerras. Os que voltavam reassumiam seus papéis públicos enquanto suas mulheres voltavam a sua condição doméstica.
Ainda assim, na alta Idade Média, a condição das mulheres florescia na Europa. Elas tinham acesso às artes, às ciências, à literatura. Uma monja, Hrosvitha de Gandersheim, foi o único poeta da Europa por cinco séculos.
É logo após este período, no final do século XIV, que inicia oficialmente a “caça as bruxas”, um genocídio religioso conhecido como Inquisição.
Mas, a perseguição religiosa é muito mais antiga. Datado do século VII, o Liber Poenitentialis de Teodoro, Arcebispo de Canterbury, contém as leis eclesiásticas mais antigas da Inglaterra. Consiste numa lista de pecados e penitâncias correspondentes a cada um deles. Uma parte do livro é dedicada a Antiga Religião e seus ritos. Teodoro fala dos pecados: “Comer ou beber em templo pagão (...) é um sacrilégio e equivale a mesa dos demônios. Não só celebrar festins em abomináveis recintos pagãos, oferecer ali comida ou consumi-lá. Se em julho alguém transformar-se em animal, cervo ou touro (...) tres anos de penitência porque isso é diabólico.
Outro exemplo (e os exemplo de leis eclesiásticas são vários a partir de Teodoro) do séc. VIII é a Lei dos Sacerdotes de Nothumbría que diz que aquele que praticar qualquer ato de paganismo, com sacrifícios ou uso do fogo ou que seja amigo de uma bruxa (...) pagará dez marcos, metade a Cristo e metade ao Rei.
Em 1398, a própria Universidade de Paris deplora solenemente que o crime de bruxaria estava se tornando cada vez mais frequente. Mas o “crime religioso” cometido pelas pessoas acusadas de bruxaria era um só: adorarem deuses pré-cristãos como Diana, Cibele, Deméter, Bacco, Pã, nomes diferentes para designar a Deusa Mãe e Seu Filho Divino e, em sua homenagem, executarem 8 ritos anuais conhecidos como Sabats, festivais do fogo e da fertilidade que acompanhavam o ciclo das estações e comemoravam, desde a preparação do solo, até o término da colheita. (ver Exotérico número 9, pág. 7.)
O crime maior das “bruxas” era sua capacidade de entender e curar as dores e aflições humanas, seu conhecimento das ervas que se transformavam em chás e emplastos curativos, sua habilidade de fazer partos e benzer crianças, seu conhecimento mágico usado para aliviar os corações humanos. Sua ousadia maior consistia em dançarem nuas nos ritos à Deusa e ao Deus, pedindo à terra uma colheita fértil. Por estes crimes foram perseguidas, presas, torturadas e queimadas vivas durante quase quatro séculos. Com certeza existiram também aquelas que praticavam a magia negra, mas assim como nem todas as bruxas foram boas, nem todas as pessoas o são.
Mas, apesar dos milhares de processos de bruxaria acusarem especificamente estas mulheres, e muitos homens, principalmente nobres, de pacto com o demônio, as razões do hediondo crime chamado Inquisição são outras.
Em primeiro lugar, verifica-se que, em todos os casos de condenação, os bens e propriedades do acusado passavam para as mãos da igreja, na pessoa do inquisitor, o que tornava bastante atraente a acusação a nobres e grandes proprietários. Além disso, existiam “caçadores” profissionais de bruxas, pagos por condenação. Portanto, quanto maior o número de feiticeiras na fogueira, maiores os honorários do caçador.
Outro bom motivo para a Inquisição foram as faculdades de medicina surgindo no interior do sistema feudal. As “bruxas” era as melhores anatomistas de seu tempo, as parteiras e “médicas” populares, e aqueles que necessitavam de tratamento para saúde na certa procurariam sua vizinha curandeira e não um desconhecido formado em medicina.
Mas, talvez o maior motivo tenha sido a necessidade do sistema feudal de centralizar e hierarquizar, se organizando com métodos políticos para sobreviver e manter o sistema capitalista que estava se formando. Para isso, era necessario colocar dentro de “regras de comportamento” as massas camponesas, controlando as mentes e os corpos. O fizeram através dos tribunais da Inquisição que varreram a Europa, transformando o camponês livre em um ser alienado e sem vontade, normatizado sua vida e sua alma.
SALÉM
No ano de 1626 imigrantes ingleses fundaram no Estado de Massachusetts-EUA uma pequena e obscura cidadezinha a qual deram o nome de Salém.
Os imigrantes, que fugiram da Inglaterra para escaparem à perseguição religiosa, se consideravam o Povo Escolhido de Deus e pertenciam a Igreja Puritana. Fundaram em Salém uma comunidade fechada e teocrática, que não permitia a entrada de devotos de religiões diferentes da sua na comunidade.
Governavam a cidade os Ministros religiosos, que não admitiam sob hipótese alguma o não comparecimento da população aos cultos da Igreja Puritana, sob pena da excomunhão e perda de direitos, inclusive de propriedade, dos faltosos.
A administração era feita de modo severo, combinando trabalho árduo, justiça implacável e disciplina religiosa para que nenhum puritano se desviasse do caminho de Deus, pois acreditavam eles que o ser humano dificilmente alcançaria o Paraíso em função de já ter nascido pecaminoso. Por carregar consigo a maldição do pecado, a ninguém era permitido negligenciar de suas severas obrigações.
A rigidez dos costumes estendia-se a adolescentes e crianças, aos quais não eram permitidos quaisquer divertimentos.
As festas, as brincadeiras, a dança, tudo era considerado pecaminoso e absolutamente proibido.
Além da vida austera e trabalho árduo, a unica atividade que restava aos adolecentes era o estudo do evangelho.
Na primavera do ano de 1692, quando a estação de plantio iniciava, um fato insólito viria a mudar completamente a rotina desta cidadezinha até então desconhecida.
Quatro meninas entre nove e dezesseis anos - Mary Walcott, Anne Putnam, Abigail Williams e Betty Parris , está última filha do Pastor da Igreja Puritana, reverendo Parris - começaram a apresentar um estranho comportamento. Sofriam convulsões, desmaios, falta de concentração e outros males. Tinham visões fantásticas, nas quais o demônio em pessoa as importunava e tentava obrigá-las a assinar com ele um pacto no qual suas almas passariam a ser propriedade dele. Ao final do pesadelo, eram obrigadas a assistir a um Sabat onde homens e mulheres lhe prestavam homenagem.
Médicos e religiosos foram convocados para examinar as meninas, mas como nenhuma doença foi diagnosticada a causa da doença e dos pesadelos só poderia ser uma: possessão demoníaca.
Nesta época, a família de Betty Parris tinha uma crida negra chamada Tituba. Originária de Barbados, Tituba trazia consigo a tradição e cultura e seu povo, completamente diversa dos puritanos. Muitas vezes reuniu-se as meninas para contar histórias sobrenaturais e, numa ocasião, ensinou-as a arte da quiromancia. Evidentemente esse procedimento era absolutamente proibido e as meninas sabiam disso. Mas, numa comunidade como aquela, quais as opções de divertimento para um adolescente saudável?
Provavelmente o sentimento de culpa e o medo de serem descobertas causaram as crises e pesadelos e, ao serem interrogadas, confessaram a “verdade”, incluindo o fato de terem dançado à noite na floresta em companhia de Tituba.
Evidentemente, a crença dos puritanos os fez acreditar que aquilo era realmente coisa do demônia e Tituba sua mensageira.
Com medo das consequências de seu terrível pecado, e para se livrarem da culpa, as meninas começaram a acusar pessoas indiscriminadamente. Apontaram alguns que teriam feito “pacto com o demônio”, outros que teriam dançado com elas na floresta, outros de terem participado ativamente de seus pesadelos. No final, a loucura das adolescentes se espalhou de tal forma que cerca de 150 pessoas foram acusadas de bruxaria, e destas 20 foram executadas pela forca ou por esmagamento com pedras. A primeira delas, evidentemente, Tituba. Depois de Tituba, os alvos mais fáceis foram duas mendigas - Sarah Good e Bridget Bishop - e Sarah Osborne, mulher de comportamento suspeito por não frequentar regularmente a igreja.
Foi instaurado um tribunal na cidade, presidido por William Stroughton, um puritano severíssimo que ocupava o posto de tenente-governador.
Stroughton, bem como o reverendo Cottom Mather, acreditavam piamente em demônios e bruxas e o último orgulhava-se de ser um implacável caçador das feitiçeiras.
Um histeria coletiva tomou conta de Salém e as acusações se sucediam. Pessoas respeitáveis eram acusadas, provavelmente em função dos bens que possuíam, como o dono de uma grande propriedade rural e um prospéro proprietário de navios.
Todas as acusações eram acolhidas como verdadeiras, o que deu lugar a acusações por vingança, perseguições e disputa de terras. Como a bruxaria era uma “crime invisível”, onde só a bruxa e a vítima podem testemunhar, toda pessoa acusada era culpada. Todos aqueles que “confessavam a culpa” eram perdoados, porque os puritanos acreditavam que a confissão desfazia o “pacto com o demônio” a a alma ficava pronta para reencontrar Deus. Para verem-se livres da forca, essas pessoas não só admitiam publicamente sua culpa como eram obrigadas a apontar outros infelizes que passariam pela mesma humilhação.
Aqueles que se recusavam a confessar uma culpa que nunca tiveram foram executados.
Um fazendeiro de 83 anos, Giles Corey, foi esmagado por
pedras enormes colocadas sobre seu peito porque se recusava a confessar.
A condenada mais famosa de Salém foi Rebecca Nurse, uma senhora respeitável, caridosa e religiosa de 72 anos. Foi enforcada como feitiçeira, com base em provas improváveis apresentadas no tribunal.
Ainda em 1692, a histeria coletiva começou a diminuir. A ameaça de acusação feita por caçadores de bruxas à esposa do então governador Phips foi descisiva. O governador exigiu que se adotassem métodos mais rigorosos do que simples testemunhas para provar a culpa dos acusados. Em 29 de outubro de 1692 a perseguição as feitiçeiras foi encerrada. Os acusados ainda presos foram libertados e nunca mais houve condenação por bruxaria nos EUA. O saldo da tragédia: crianças nas ruas pedindo comida - órfãos dos condenados, propriedades abandonadas, animais soltos, safras apodrecendo nos campos.
TORTURA E FOGUEIRA
A história da bruxaria e seus processos é estranha e sombria. Torna-se difícil saber se o que aconteceu entre os séc. XIV e XVII foi uma psicopatologia coletiva, uma demência contagiosa ou o que se poderia denominar de Era do Caos, onde seres humanos (?) se regozijavam torturando e assassinando seus irmãos.
A tortura não foi exatamente uma novidade trazida pelo Braço Secular da Igreja e consumada nos chamados Autos da Fé - execuções públicas que se assemelhavam a um grande festival onde se reuniam curiosos, vendedores ambulantes e vagabundos, além dos representantes da igreja, carrascos e vítimas.
Egípcios e Assírios praticavam a tortura, assim como entre as cidades-estados da Grécia a pratica era comum. Em Atenas, escravos e estrangeiros eram torturados.
Essa prática (ou tática) porém, de torturar e matar em massa, é exclusiva da Santa Madre Igreja. Parece que é assim que se resolviam na época as “diferenças religiosas”, pois nem só de bruxas foram alimentadas as fogueiras. Entre 1307 e 1310, trinta e seis mil Templários morreram em Paris sob tortura. Talvez a perseguição nem fosse tão religiosa assim, considerando-se que a Ordem dos Templários acumulou riquezas e propriedades ao longo dos anos e que, após a prisão e execução de Jacques de Molé e seus seguidores, os bens da Ordem passaram para a igreja.
Para compreender a Era das Fogueiras como fator de perseguição religiosa, é necessário entender a mentalidade da época. É preciso lembrar que o diabo fazia parte da vida cotidiana, era uma personalidade real em que todos acreditavam, com quem alguns até “falavam” - as bruxas evidentemente - e que tal personagem empregava ardis e estratagemas para confundir os seguidores da fé católica. Estas estranhas crendices explicavam perfeitamente aos ignorantes o porquê de bruxos, e especialmente bruxas (80% dos condenados pela Inquisição eram mulheres) serem detidos diante da mínima suspeita, da mais inacreditável denúncia, serem torturados e executados.
Os especialistas da época, Springer, Bodin, Lancre deixaram sobre seus processos livros espantosos, detalhando os suplícios infligidos aos acusados. Aquilo que eles divulgavam apavorava por sua ferocidade e um deles se vangloriava de que sua “justiça era tão boa” que as bruxas buscavam por sí mesmas a morte para escapar dele. Jean Bodin falava dos crimes detestáveis praticados pelas bruxas, o menor dos quais merecia uma requintada morte.
Nos processos por bruxaria a condenação era a regra. Várias eram os meios de obterem confissões. Uma das principais provas de culpa da bruxa era a marca do diabo, isto é, um ou mais pontos insensíveis do corpo das mulheres que os carrascos procuravam espetando-lhes longas agulhas.
Outra prática comum era a prova da água. Num rio ou lagoa, elas eram jogadas de pés e mãos amarrados. Se inocentes, afundavam e se afogavam. Se culpadas, elas sobreviviam ao rio e eram queimadas. Outra prova era a da bibliomancia, onde colocavam num dos pratos de uma balança a Bíblia e no outro a bruxa. Se a bruxa pesasse mais que a Bíblia (e isso, naturalmente, sempre acontecia) ela era culpada e ardia nas chamas purificadoras da fogueira.
A fogueira era, efetivamente, a pena reservada às bruxas. Algumas vezes, como grande favor, eram estranguladas antes de serem queimadas, mas este “abrandamento da pena” era condenado pela maioria dos juízes.
Talvez de todos os inquisidores, o mais famoso tenha sido o espanhol Tomás de Torquemada, que publicou suas instruções, que descreviam o emprego detalhado dos procedimentos de tortura que deveriam ser usados nos processos por bruxaria. Seus métodos foram aperfeiçoados por Fernando de Valdez em 1561 e seguidos por vários de seus sucessores.
O mais famoso livro da inquisição é, sem dúvida, o Malleus Maleficarum, título traduzido por O Martelo das Feiticeiras. Este manual da demência religiosa datado de 1484 é dividido em três partes. A primeira delas versa sobre as condições necessárias para a bruxaria - incluindo-se naturalmente o diabo e a bruxa; a segunda sobre os métodos usados pelas bruxas para atormentar os homens ea última versa sobre os métodos judiciais a serem tomados contra as bruxas e hereges. O Malleus chega a cogitar a possibilidade do ataque de lobos a seres humanos ser obra de magia causada por bruxas, ou da transformação de homens em bestas como obras de bruxaria, ou ainda a capacidade das bruxas de fazer sumir ao órgão genital masculino.
Vários foram os processos famosos da Inquisição. Giordano Bruno foi queimado vivo, não sem antes ter sua boca lacrada por um pedaço de metal para evitar que continuasse a mostrar aos senhores da igreja o absurdo de suas crenças e métodos.
Joanna D’Arc foi queimada sem ao menos passar pelo processo comum de ser entregue as autoridades seculares, por ser ela o ponto de convergência de uma poderosa organização e uma representante da Velha Religião.
Nostradamus foi acusado e torturado pelas autoridades seculares mas conseguiu escapar com vida graças as suas relações com a corte, especificamente a rainha.
Os processos por bruxaria dentro das cortes da Europa também foram abundantes. Alguns nobres acusados de prática de bruxaria foram Catarina de Médicis, Maria de Médicis, Carlos IV e o Bispo de Troyes. Algumas das “vítimas” de enfeitiçamento: Jeanne de Navarre, Luis X, Henrique III e Henrique IV.
Durante a Era das Fogueiras, a tortura tornou-se procedimento ordinário em quase toda a Europa. Na Inglaterra, os acusados eram estimulados a confessar através de pena forte e dura. Na inquisição espanhola, a tortura era empregada regularmente para obter confissões e, até a morte de Franco, o garrote ainda era usado. Em 1975 um estudante de 25 anos foi morto por esse método.
Práticas abomináveis como o uso do Cavalete, do Balcão de Estiramento, da Roda de Despedaçamento ou da Cadeira da Inquisição - tal cadeira possui 1629 pontas e foi usada para torturar o célebre mago Caliostro - foram adotadas também na França, Alemanha e Itália.
Sob influência do Iluminismo, um movimento humanitário contra tortura cresceu no século XVIII até que a Inquisição abandonou o emprego de tais práticas. Agora, mais de dois séculos após o final da caça às bruxas, da tentativa de extinção da Velha Religião da face da terra, o resultado é aterrador: dois terços da humanidade passam fome, o arsenal nuclear pode provocar a destruição instantânea do planeta, a destruição do meio ambiente é lenta e continua e, para a maioria dos povos, religião não passa de uma palavra a ser colocada numa ficha qualquer de procura de emprego.
Mas, apesar disso, as bruxas voltaram, e para ficar. São terapêutas, tarólogas, curadoras, cartomantes, médicas, jornalistas, empregadas domésticas, estudantes, não importa. O que importa é que não podem ser queimadas novamente, que podem hoje rir dos Torquemadas, Kramers e Sprengers e se deliciar com tudo o que causou a morte das feiticeiras há dois séculos: podem amar, curar, romperem tabus, trabalhar, resgatar os valores femininos, humanos e religiosos da Deusa Mãe e transformar cada dia de suas vidas num ritual de fé e amor, onde o importante é ser e fazer feliz. Assim, as cem mil vítimas da ignorância dos inquisidores estarão bem vingadas.
Repetindo o que postei hoje no Facebook:
Não somos pobres camponesas indefesas. Não temos medo de fanáticos religiosos. Não desrespeitamos a religião alheia, embora os fundamentalistas não tenham o menor respeito pela nossa. Querem dominar as mentes desavisadas? Más notícias: existe vida pensante no planeta.
Querem uma nova Inquisição?
Más notícias (2): dessa vez, vão encontrar gente guerreira pela frente. Muita gente.

* textos: Mara Barrionuevo para o jornal "O Exotérico", publicados em três diferentes edições.
Bibliografia:
Seitas Secretas - coleção Mistérios do Desconhecido
Bruxas e Bruxarias - coleção Mistérios do Desconhecido
Malleus Maleficarum - 
Kramer e Sprenger
* Imagens da web