A representação mais antiga que se conhece de uma divindade encontra-se na Caverne des Trois Frères, em Ariège e data do final do período paleolítico (Idade da Pedra Lascada - 1 milhão de anos atrás até 10 000 a.C)
A figura é de um homem vestido com a pele de um cervo ou veado, usando na cabeça chifres desse animal. A pele cobre todo o corpo do homem; as mãos e os pés foram desenhados como se estivessem sendo vistos por um material transparente, fornecendo assim ao espectador a informação de que a figura é um ser humano disfarçado. O rosto tem barba, mas há uma certa dúvida sobre a intenção do autor: se ele queria representar um homem-animal com máscara ou com o rosto descoberto.
O homem com chifres foi desenhado na parte superior da caverna; abaixo dele e à sua volta há representações de animais pintados de maneira magistral, característica do artista do paleolítico. Levando em conta a posição relativa das figuras, o homem ocupa uma posição dominante e está no ato de realizar uma cerimônia na qual os animais tomam parte. Embora a pintura dos animais esteja localizada onde pode ser facilmente vista por um observador, o homem com chifres só pode ser visto da parte da caverna onde o acesso é mais difícil. Esse fato sugere que um alto grau de divindade era atribuído a essa representação.
De acordo com antropóloga Margaret Murray, seu significado só pode ser compreendido pela analogia, mas os elementos são suficientes para que possamos ter quase certeza de que o homem representa o deus encarnado, prestes a realizar uma dança sagrada.
Diz Gerald Gardner em The Meaning of Withcraft: “Ele é o antigo deus fálico da fertilidade que veio dos primórdios do mundo.”
O Homo sapiens sapiens já vivia há cerca de 40 000 anos, e é o responsável por essas representações, assim como pelas pinturas nas paredes de outras cavernas como a de Lascaux, na França e de Altamira, na Espanha.
Nesse período a temperatura na Europa caia rapidamente e grandes lençóis de gelo ocupavam a Terra. A glaciação matou a vida vegetal e a sobrevivência dos clãs dependia da caça. As pinturas representavam o espírito dos animais que nossos ancestrais desejavam caçar e foram a primeira forma de magia simpática reconhecida pelos historiadores.
O homem de Ariège é provavelmente a representação do espírito das manadas, o deus encarnado, guardador de rebanhos.
No início de neolítico, os grandes lençóis de gelo retrocederam, e as sociedades nômades de caça deram lugar às sociedades sedentárias. Quando os humanos caçadores-coletores que habitavam as florestas começaram a desenvolver essas sociedades agrícolas, trouxeram consigo as antigas deidades do mundo selvagem. O deus de cornos de gamo da floresta foi transformado um deus com cornos de bode dos pastos, provavelmente pela necessidade de se domesticarem animais numa sociedade agrícola. E, nessa sociedade o deus da floresta tornou-se também o deus das colheitas.
O foco do antigo culto, no entanto, não era centrado numa forma masculina, mas numa forma feminina. Os primeiros ancestrais da expressão do paganismo, chamada hoje de Antiga Fé, cultuavam uma Deusa Mãe que refletia a misteriosa natureza das mulheres, a qual lhes consentia sangrar por dias sem enfraquecer e gerar outra vida humana. E, se a vida provinha da mulher que ‘engravidava dos deuses deitada ao luar’, toda a criação provinha de uma divindade feminina.
Foi apenas na Idade do Bronze que o homem descobriu fazer a relação entre o ato sexual e a fecundação.
Imagens neolíticas de figuras femininas poderosas foram encontradas em dezenas de lugares espalhados pelo planeta, como a Deusa de Willendorf, a do Rio Nilo e a impressionante estatueta de uma mulher dando á luz sentada num trono e cercada por animais, de Çatal Hüyük na Turquia, datada de 5750 a.C
A RELIGIÃO
Para os pagãos, os Deuses são a própria natureza e, por isso, a preservação dela é a essência da Religião da Deusa. O princípio da imanência está em tudo. Ela é onipresente da vida e em cada ser humano. A Antiga Fé não vê a divindade como algo á parte da natureza. Ela é o mundo, a terra, e todas as coisas que existem. Rios, mares, árvores, pedras são a própria divindade manifesta.
O paganismo como religião começou a tomar forma no período mesolítico e se estabeleceu definitivamente entre os povos do neolítico, cuja cultura e sobrevivência estavam diretamente ligadas á terra. Desenvolveram rituais sazonais de adoração á natureza observando a própria natureza e a trajetória do sol ao longo do ano. Tais ritos acompanhavam o ciclo das estações, a semeadura, crescimento e colheita das lavouras e fertilidade os animais.
Embora fosse a Deusa foco dos cultos, era em torno da figura do deus que girava a Roda do Ano. Nos ritos, bem como na religião como um todo, o deus personifica o Sol e sua passagem pelo céu. A Deusa personifica a lua e seus ciclos, bem como toda a natureza vegetal. Ela é a mãe, ele o filho/amante; ela a semeadora, ele a semente. Ele é a caça e também o caçador. Ela dá a vida e chama para a morte.
A Roda do Ano, composta por oito rituais, é um síntese de séculos de história, desde os ritos de caça e de culto aos mortos do paleolítico, aos ritos apropriados a fertilidade da terra e dos rebanhos do neolítico. São eles:
YULE, o solstício de inverno. A Festa de Renascimento do Sol celebra o nascimento do Deus Sol após a noite mais longa do ano. Ele passa a governar a parte escura do ano.
IMBOLC, o 1º. Festival do Sol. Os campos são purificados e preparados para a semeadura, enquanto se celebra o crescimento da Criança Divina nascida no Yule.
EOSTRE, o equinócio de primavera, tempo da semente brotando na terra. O dia e a noite são iguais e a Criança Divina vai se tornado o jovem caçador.
BELTAINE, o Festival da Fertilidade celebra a força vital da natureza e se acendem os fogos que vão iluminar o caminho do verão. O Deus jovem e a Deusa se unem.
LITHA, o solstício de verão é a época do grão amadurecido. É no ápice que inicia a decadência. A Deusa passa a governar a parte clara, o Deus torna-se adulto.
LAMMAS, o primeiro festival da colheita, comemora a união fértil dos deuses em Beltaine. O Deus adulto de Litha incia seu processo de amadurecimento.
MABON, o equinócio de outono, celebra segundo festival da colheita. Os frutos da terra são todos colhidos e o Deus começa a envelhecer.
SAMHAIN, o Festival dos Mortos, marca a volta da estação fria e a morte do Deus, que renascerá em Yule. Acontece em 31 de outubro, dia do Ano Novo Celta.
A estrutura religiosa de vários povos da antigüidade foi unificada em uma única religião pelos druidas, sacerdotes celtas. Em The Mysteries of Britain, Lewis Spence afirma que os ensinamentos druídicos surgiram de uma combinação da cultura mediterrânea neolítica com as crenças nativas da antiga Bretanha. O Culto aos Mortos, comum ás crenças da Europa Setentrional, teriam sido trazidos por viajantes mediterrâneos, os homens de Long Barrow, ao litoral britânico por volta de 2000 a.C.
Entre 600 e 500 a.C os celtas invadiram a Europa e se deparam com os cultos.
Com o início da Idade do Ferro, as ilhas britânicas ficaram isoladas e dessa forma as crenças celtas transformaram os ensinamentos importados numa religião única.
Quando uma Roma cristianizada invadiu a Europa no sec. VII d.C, iniciou-se a conversão dos povos pagãos a nova religião do Cristo.
Cinco séculos mais tarde, aqueles que não aderiram á nova religião passaram a sofrer a perseguição da igreja. Mas foi no ano de 1484 que essa perseguição tornou-se oficial, com a assinatura da Bula de Inocêncio VIII, dando aos inquisidores Heinrich Krames e James Sprenger poderes de vida e morte sobre os pagãos seguidores da Antiga Fé.
Durante 4 séculos, milhares de pessoas foram torturadas e mortas sob o pretexto de servirem ao demônio, genocídio perpetrado na época em que se formavam as nações modernas.
A Santa Inquisição transformou o Deus de Chifres no demônio católico e o Sagrado Feminino em feiticeiras malignas queimadas em fogueiras.
A Antiga Fé teria sido completamente varrida da história, não fossem os poucos que conseguiram escapar do braço secular da igreja e levado os ensinamentos antigos para as sombras da História.
O paganismo desses povos foi resgatado nos sec XIX e XX por antropólogos como Margaret Alice Murray, Gerald Gardner e Charles Godfrey Leland que escreveu, em 1899, Aradia Golpel of Witches.
Os neo-pagãos chamam de WICCA a Antiga Fé. Mas, mesmo estabelecida como religião, a WICCA tateia no escuro a procura de suas raízes. Afinal, a pré-história nos deixou apenas resquícios de suas civilização e a História, como sempre, é escrita pelos vencedores.
Bibliografia:
Barrionuevo, Mara – A Deusa, Jornal O Exotérico, 2001
----------------------- Wicca, Jornal O Exotérico, 2002
----------------------- O Deus das Bruxas, Jornal O Exotérico, 2003
Gardner, Gerald – Bruxaria Hoje, Madras Editora, 2003
Grimassi, Raven – Os Mistérios Wiccanos, Ed. Gaya, 1997
Heinrich Krames e James Sprenger – Malleus Maleficarum, 1484 (Ed. Brasileira Rosa dos Tempos, 1991)
Murray, Margaret – The Witch-Cult in Western Europe, Oxford University Press, 1921
----------------------- O Deus das Feiticeiras, Oxford University Press, sem data
Prieto, Claudiney – Wicca A Religião da Deusa, Ed. Gaya, 2000
Santos, Maria Januária V. - História Antiga e & Medieval. Ed. África, 1992
Starhawk – A dança Cósmica das Feiticeiras, Ed. Record, 1979
Seguindo os rastros de Fernando Pessoa, na voz de Álvaro Campos, ao sugerir que a obra de seu mestre Caeiro é a reconstrução do paganismo, vejamos em primeiro lugar o
sugestivo título, escolhido certamente não ao acaso.
Quem é O GUARDADOR DE REBANHOS?
O título remete diretamente à pintura mítica do homem cercado de animais na Caverne des Trois Frères, em Ariège. O Guardador de Rebanhos de Caeiro é o antigo deus da fertilidade que veio dos primórdios do mundo, o Senhor da Caça e dos caçadores, o espírito que guardava as manadas e inspirava nossos ancestrais do paleolítico a pinturas como a encontrada em Ariège e Lascaux, na França, e em Altamira, na Espanha.
As primeiras linhas do poema Eu Nunca Guardei Rebanhos remete não apenas à figura do Senhor das Manadas, mas ainda as andanças do Deus pagão pela Roda do Ano, a roda cíclica das estações que descreve o nascimento, vida, morte e renascimento do Deus.
Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
Na Roda do Ano, é na época do Samhain que acontece a morte do Deus. Dizem as lendas, poeticamente, que ‘a Criança Divina volta ao útero da Mãe, a própria Natureza’
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Novamente nessas linhas Caeiro faz referência ao ciclo das estações. O pôr do sol, o esfriamento das planícies são alusões á chegada no inverno, chamado pelos pagãos de ‘a parte escura do ano’.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
Depois de percorrer o ciclo completo das estações vem o descanso, o sossego no útero da mãe. É natural e justa pois o ciclo das estações está completo e o Deus foi semente que cresceu e planta colhida, volta a ser semente para renascer no próximo ciclo da Roda.
Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso
Caeiro fala aqui mais uma vez do Deus das manadas. Os pagão do paleolítico não apartavam o deus dos animais que o rodeavam. Ele era o próprio espírito da manada e, portanto, parte dela.
E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
Novamente o pôr do sol, a ‘a nuvem passa a mão por cima da luz’, a alusão à proximidade do inverno, a parte escura do ano. Á luz da Roda das Estações é justamente na proximidade do inverno que o Deus se torna velho. E corre um silêncio (da morte?) pela erva fora.
Por isso Caeiro ‘sente um cajado nas mãos’. O cajado do pastor ou do deus-homem envergado pelo tempo que usa o cajado como apoio e aguarda a estação da morte?
Aqui também Caeiro olha para o rebanho e vê suas idéias, assim como o Deus está fora do rebanho e ao mesmo tempo faz parte dele.
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.
(...)
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias,
Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho,
Qualquer cousa natural, por exemplo a árvore antiga. Aqui Caeiro torna-se parte da Natureza, como a árvore. Mas vale lembrar que em muitas das religiões pagãs, a árvore tem um papel central: Yggdrasil era a Árvore do Mundo dos mitos nórdicos e é pela Árvore do Mundo que xamãs ‘sobem e descem’ em suas viagens visionárias.
Muitos dos deuses pagãos eram associados às árvores, como na lenda de Átis, o deus Pinheiro. Entre os celtas o carvalho era a árvore sagrada, do qual provinha o visco. Além do carvalho, os celtas possuíam um alfabeto arbóreo chamado Beth Luis Nion.
Em algumas das tradições neo-pagãs, a parte clara (primavera e verão) e parte escura (outono e inverno) da Roda do Ano são representadas pelo embate entre o jovem Deus Carvalho e o velho Deus Azevinho.
Não seriam ainda as crianças, que se sentam á sua sombra cansadas de brincar, os próprios seguidores da Fé, exaustos após longas horas de danças rituais?
(...)
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural —
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.
* Esse texto é uma análise do poema O GUARDADOR DE REBANHOS (Livro homônimo), escrito por Fernando Pessoa na voz de um de seus heterônimos, Alberto Caeiro, no qual outro de seus heterônimos, Álvaro Campos afirma, no prefácio, ser essa obra o próprio paganismo.
Trabalho para a disciplina de Literaturas da Língua Portuguesa, curso de Licenciatura em Letras, USP/2010.
* Interpretação da obra: Mara Barrionuevo
* imagens da web
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